Apresentação
A Universidade Federal Fluminense recebe, de 10 a 12 de setembro de 2014, o 2º Simpósio Internacional de História Pública, que terá dentre suas atividades conferências, mesas redondas com debatedores convidados, oficinas, apresentações orais em painéis temáticos, sessões de comunicação de Iniciação Científica e Iniciação à Docência, apresentações lançamentos de livros e outros trabalhos.
Organizado pela Rede Brasileira de História Pública e, em âmbito local, pelo Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI), o evento busca consolidar uma sistemática de realizações bienais de simpósios de história pública no Brasil, após a bem sucedida realização do Simpósio Internacional de História Pública: A história e seus públicos, que no ano de 2012 reuniu cerca de 600 participantes na Universidade de São Paulo.
O tema aglutinador desta edição do evento – “Perspectivas da História Pública no Brasil – abre-se para um elenco de tópicos instigante e variado, propiciando o cruzamento de fronteiras entre diversas áreas de conhecimento e atuação, acadêmicas e não acadêmicas. Tal intercâmbio intelectual, empreendido entre pesquisadores e profissionais de várias áreas, contribuirá enormemente para a continuidade da Rede Brasileira de História Pública. Para tanto, este encontro terá um perfil nitidamente inter-institucional, interdisciplinar e transnacional.
A Rede Brasileira de História Pública
Os pilares da Rede Brasileira de História Pública foram construídos durante o “Curso de Introdução à História Pública”, ocorrido na Universidade de São Paulo (USP) em fevereiro de 2011, promovido pelo Núcleo de Estudos em História da Cultura Intelectual. O curso resultou no lançamento do livro “Introdução à História Pública” que reuniu autores brasileiros e estrangeiros, abrindo caminho para realização do “I Simpósio Internacional de História Pública: a história e seus públicos” realizado no Departamento de História da USP em julho de 2012. Tais iniciativas demonstraram a fertilidade do tema e a disposição de um número expressivo de pessoas em constituir um foro que acolhesse os diversos trabalhos em curso. Em janeiro de 2013 foi lançada na internet a página da “Rede Brasileira de História Pública” (RBHP): www.historiapublica.com.
No intuito de divulgar a RBHP, em julho de 2013, se realizou o Simpósio Temático “A História Pública e os Públicos da História” durante o XXVII Simpósio Nacional de História – UFRN. Em setembro de 2013, reuniu-se o Grupo de Trabalho “História Pública e Oralidades” no X Encontro da Regional Sudeste da Associação Brasileira de História Oral – UNICAMP. No dia 14 de novembro de 2013, ainda, ocorreu o encontro “História: vários públicos, várias narrativas” no Museu Histórico Abílio Barreto de Belo Horizonte, promovido pelos programas de pós-graduação em História das Universidades Federais de Minas Gerais (UFMG), Fluminense (UFF) e do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tratou-se de um evento de sensibilização para o evento aqui proposto: o “2º Simpósio Internacional em História Pública”, a ser realizado em setembro de 2014 na UFF.
A expressão história pública ultrapassa a ideia de acesso e publicização de concepções em vigor na academia. É necessário o estabelecimento de pontes entre o saber acadêmico construído e o trabalho não-científico, promovendo a difusão e o desenvolvimento de uma “história” que estimule a participação e colaboração das diversas “comunidades” fora/dentro do espaço universitário. Considera-se, assim, a necessidade da não supressão da ciência em favor da história pública, porém, o desejo de diálogo com as práticas e reflexões não acadêmicas compromissadas com a problematização da cultura histórica.
A história pública sugere práticas de responsabilidade político-social com a memória coletiva. Nesse sentido, a narrativa fílmica, a história oral e as inúmeras articulações visuais, verbais, sonoras e textuais podem contribuir para a elaboração e socialização da produção do conhecimento histórico. As necessidades e os interesses de uma comunidade podem inspirar projetos em história pública envolvendo os membros dessa coletividade, pesquisadores acadêmicos e não acadêmicos em colaboração.
Buscam-se no Brasil, diante da elasticidade da expressão “história pública”, oportunidades para abordar temas como: a relação entre o saber histórico e a diversidade de seus públicos; o impacto social da produção acadêmica brasileira na área de história; o papel dos intelectuais no espaço público; a função da história pública na divulgação e no gerenciamento do patrimônio material e imaterial; o impacto das novas mídias sobre as estratégias de produção e publicização da história; os diálogos entre a história e outras áreas de conhecimento aplicado, como o jornalismo, o cinema, a gestão de organizações, o turismo; a relação entre história e literatura, em múltiplos âmbitos da narrativa histórica: as biografias, os testemunhos, a ficção histórica. Nessa seara se estabelecem os pressupostos para a coprodução do saber problematizado sobre o passado, em um exercício no qual diferentes linguagens e metodologias se complementam e ajudam na percepção histórica para além dos espaços acadêmicos e escolares.
A diversidade de leituras e procedimentos da história pública incide sobre o conhecimento histórico, não apenas preocupada em atingir um público maior, mas aprender com ele, com suas mudanças e demandas. A história pública deve levar em conta as necessidades, os movimentos e os imaginários das comunidades nas quais está inserido, e pode contribuir na organização e divulgação de interesses múltiplos.
O conceito de história pública não é novo, mas a reflexão sobre sua especificidade no Brasil se expandiu nos últimos anos. Para além da divulgação de um conhecimento organizado e sistematizado pela ciência, a história pública revela a possibilidade de construção e difusão do conhecimento histórico – de maneira dialógica, integrada e responsável – por meio de centros de memória, museus, arquivos, televisões, rádios, cinemas, teatros, editoras, jornais, revistas, organizações governamentais e não governamentais, consultoria, entre outros espaços.
O debate sobre história pública no Brasil estimula reflexões sobre a atuação dos diferentes profissionais que lidam diretamente com as chamadas representações históricas. Vislumbra-se, ao integrar múltiplos campos e recursos, a história e seus diversos públicos em um caminho de conhecimento e prática. Experiências diversasdão mostra de como o debate sobre história pública continua a render frutos e pode ser ampliado e enriquecido, dentro e fora da academia.
Um pouco sobre o tema do 2º Simpósio
Para o 2º Simpósio Internacional de História Pública, em face da rápida proliferação de iniciativas em torno da história pública em vários estados brasileiros, consideramos extremamente propício problematizar o próprio desenvolvimento desta prática, levantando questões como: Qual o lugar da história pública no panorama internacional? O que a história pública brasileira pretende ser e o que se espera dela? Quais são suas especificidades? Quais as raízes, os caminhos e as marcas da história pública feita no Brasil?
Tais questões parecem pertinentes porque, nômade, o “espírito público da história” tinge-se das cores locais das paisagens em que se fixa. Nos Estados Unidos, foi no começo dos anos 1970 que o historiador Robert Kelley começou talhar a expressão, na University of California, Santa Barbara, ainda hoje um dos principais polos de irradiação de ideias sobre história pública. Em 1976, ele criou um programa de pós-graduação pioneiro voltado a preparar historiadores para atuar nos setores público e privado, ampliando suas possibilidades de inserção profissional para além do âmbito do ensino. Em 1978, visando maximizar o alcance de suas ideias arrojadas, Kelley fundou a revista The Public Historian, o mais importante periódico acadêmico do campo, atualmente com um lastro de quase 150 números publicados.
Este é apenas um dentre os tantos indícios da vitalidade do campo da história pública nos Estados Unidos. O National Council on Public History organiza desde 1979 conferências anuais que reúnem centenas de acadêmicos e profissionais da área de história – o ultimo aconteceu na cidade de Monterey, em março de 2014. A instituição lista em seu catálogo mais de 50 programas de pós-graduação em história pública ativos, inspirados pelo modelo californiano. Além dos incontáveis livros de divulgação histórica e ficção histórica publicados no país (incluindo vários best-sellers, como o recente Killing Jesus: A History, em que Bill O’Reilly e Martin Dugard tratam da morte de Jesus Cristo, dando sequência a uma série que já abordou os assassinatos de John F. Kennedy e Abraham Lincoln e que já vendeu quase seis milhões de cópias), a bibliografia especializada que discute a teoria e a prática da história pública também cresce exponencialmente.
Uma contribuição recente foi oferecida por Denise Meringolo, que em seu premiado livro Museums, Monuments, and National Parks (University of Massachusetts Press, 2012) argumentou que as raízes da história pública americana remontariam ao século XIX: a esforços federais pela preservação dos recursos naturais e culturais do país, culminando na criação do National Park Service, em 1916, agência governamental que gerencia os monumentos, parques e propriedades históricas do país. Trata-se de um raciocínio que reforça que o corpo de conhecimento sobre história pública assentado nas últimas quatro décadas não é uma criação ex nihilo – antes, baseia-se em um amplo conjunto de práticas nem sempre identificadas com a nomenclatura. O que o movimento de história pública estadunidense fez foi assentar um espaço de agregação e interlocução intelectual, em um caminho de institucionalização dependente da existência prévia do “espírito público” que qualquer pessoa, sendo ou não um historiador, poderia ter.
A dianteira do país de Barbara Tuchman e Studs Terkel espraiou-se para outras nações de língua inglesa. No Canadá, iniciativas federais ocorridas nos anos 1960 e 1970 propulsionaram a produção e a difusão de conhecimento histórico no Museu da Civilização, no Museu de Ciência e Tecnologia, no Arquivo Nacional, e em outros sítios históricos municipais e regionais. Conforme a prática intuitiva foi refinada por meio de cursos especializados, o setor aprimorou e diversificou suas aplicações. Tornou-se capaz de abraçar tanto uma série de televisão como Historylands (que há dez anos foi altamente popular ao explorar treze sítios históricos canadenses) quanto o complexo trabalho de historiadores chamados a realizar investigações e testemunhar como peritos capacitados em ações de reivindicação de terras por parte de populações aborígines.
Na Inglaterra, reluziram as ideias do notável historiador Raphael Samuel (morto em 1996, que hoje dá nome a um centro de pesquisa histórica operado conjuntamente por um instituto cultural e três universidades inglesas), que falava em “mãos invisíveis” que confeccionam a história, em um “conhecimento não oficial” produzido por muitos agentes. “Se a história fosse pensada como uma atividade em vez de como uma profissão, então o número de seus praticantes formaria uma legião”, escreveu Samuel em Theatres of Memory. Seus princípios intelectuais harmonizaram-se ao perfil de uma história pública intimamente associada à história local e comunitária, à história oral e às autobiografias, à educação histórica (muito atenta à educação para adultos), às lutas por justiça social – e também às conhecidas produções midiáticas da BBC para a televisão, para o rádio e para sua revista BBC History Magazine, além do website HistoryExtra. “O que está em cena é uma proposta de história pública inclusiva e democrática”, resumiu a inglesa Jill Liddington ao escrever sobre as características do movimento em seu país.
Os focos da história pública na Austrália são igualmente variados: compreendem os projetos de historiadores de família, o trabalho arquivístico em bibliotecas e arquivos públicos, a história e a memória empresarial, a inserção de historiadores no ativismo ambiental, e a própria discussão especializada, reunida no periódico Public History Review, fundado em 1992. Com sede na University of Technology, Sidney, o Centro Australiano de História Pública têm a voz mais forte na sistematização desse cenário. Lá, Paul Ashton e Paula Hamilton realizaram um projeto ambicioso, “Os australianos e o passado”, visando mensurar as interveniências entre a história pública e o entendimento nacional sobre o passado, ancorado em comemorações como o Dia Anzac, que celebra e homenageia as Forças Armadas da Austrália e da Nova Zelândia, dialogando de perto com uma estimada tradição de história militar.
A história pública, entretanto, não é um território exclusivo para os falantes da língua de Dickens e Faulkner. Tampouco tem limites hemisféricos. A vetusta public history dos americanos, ingleses, canadenses ou australianos não solapa o que poderia ser entendido como uma história pública na França, onde a esfera intelectual e a midiática se justapõem, alçando historiadores (entre outros pensadores, acadêmicos ou não) à celebridade. Distante do país que tem a liberté no slogan de sua história moderna, mesmo na China o cenário da história pública se desenha. Entre o aquecimento mercadológico e o cerceamento intelectual, um primeiro seminário nacional aconteceu em maio deste ano na Chongqing University, defrontando entusiastas dessa prática com os dilemas inevitáveis no tratamento de tópicos fortemente desencorajados pelo governo do país.
E o enredo continua. Existe uma história pública na África do Sul, onde comunidades afetadas pelo vírus HIV constroem suas próprias histórias com base na instrumentalização oferecida por instituições como o Centro Sinomlando de História Oral e Memória. Existe uma história pública na América Latina, onde o passado ditatorial e as democracias ainda recentes convivem com os duplos da memória: a carência que motiva a justificada instituição de comissões pela verdade e pela reparação; o excesso que sacraliza a lembrança e exime-se de colocá-la à prova da razão. E talvez esteja surgindo, ainda, uma história pública global – esta, pelo menos, é a meta da Federação Internacional de História Pública, fundada em 2010. Almejando articular diferentes paisagens nacionais, a organização capitaneada pelo italiano Serge Noiret realizará seu primeiro encontro em outubro de 2014, em Amsterdam.
Espera-se que nossa história pública reconheça seu próprio passado, celebrando e problematizando os tantos trabalhos de valor que têm sido produzidos por décadas longe de sua alcunha, mas muito perto de sua inspiração. Que não se enclausure, convertendo-se em uma corporação de “historiadores públicos”; pelo contrário, que se abra para a oportuna multidisciplinaridade e o para o trabalho colaborativo, imiscuindo-se a jornalistas, bibliotecários, sociólogos, arquivistas, cineastas, escritores, radialistas, memorialistas, diletantes, e tantos outros agentes que têm a história e o público em sua pauta de interesses. Que possa se voltar ao local, ao regional, ao nacional – à história do Brasil, enfim – sem renegar o que pode aprender com tantas experiências quanto for possível, em tantos idiomas quanto for viável. Cosmopolita ou antropofágica, libertária ou inventiva, arrojada ou independente – defina-se como quiser, nossa história pública terá mais chances de sucesso se conservar o mesmo frescor que há apenas dois anos, no primeiro Curso de Introdução à História Pública do país, arejou um insuspeito (mas talvez inadiável) movimento. “Finalmente encontrei um nome para o que faço, para o que quero fazer”, disseram muitos participantes daquele curso. Partícipes de um impulso nômade, de um mesmo espírito público, eles verbalizaram a essência do que a história pública brasileira pode, desejavelmente, ser: um lugar de encontro.